ALMAS MORTAS – ou Sobre a mediocridade humana

Esse texto é uma reescritura de minha primeira tentativa de análise literária na faculdade, uns 14 anos atrás…

A narração em obras literárias é de tal importância que, mesmo sem um enredo muito complexo, se a linguagem for utilizada da maneira certa, podemos nos ver diante de um verdadeiro clássico. Assim acontece com Nikolai Gogol, escritor russo, que com sua linguagem fez dos contos “O Capote”, “O Nariz” ou do romance “Almas Mortas” obras importantes na literatura. Aliás, já dizia Dostoyevski, “todos nós descendemos de O Capote”.

Conheci o livro Almas Mortas através de uma peça que ensaiei enquanto fazia teatro durante minha adolescência, e que nunca chegamos a estrear. O nome era citado sem muitas explicações, e lá nos idos de 2004, uma busca não sei se no extinto “cadê” ou já no Google me levou até o livro que me marcaria por muitos anos.

Nikolai Vasilievich Gogol

Gogol, nascido em 1809, teve uma vida infestada de tragédias. Seu irmão e seu pai morreram em um intervalo de apenas três anos. Pouco depois, seu amigo Puchkin, famoso poeta, também veio a falecer. Gogol fracassa ao lecionar e recebe muitas críticas sobre seus textos. Soma-se a isso um temperamento dado à angústia e à depressão que o fazia prestar atenção apenas às críticas negtivas e lutar várias vezes com ele mesmo por se achar sem imaginação.

Um pessimismo que é possível sentir nos seus textos.

A vida trágica desse autor influenciou também em outro aspecto: o livro, sendo composto por duas partes, tem a segunda incompleta. Isso porque Gogol, numa de suas crises de depressão ateou fogo aos manuscritos da segunda parte. Apesar de salvo boa parte dos papéis (dizem que por um criado), algumas partes se perderam, faltando fragmentos no decorrer dessa segunda parte. E o final da história.

Sim. O livro não tem final.  

E não, isso não tem muita importância.

O que são essas tais “Almas”?

“Almas Mortas” conta a história de Pável Ivanovitch Tchichikov (ou Chichicov, conforme a tradução), o personagem central, que tem a idéia de comprar almas. Calma, não é nada macabro. O termo almas se refere a camponeses – vamos lembrar que a Rússia até a Revolução de 1917 era constituída de grandes feudos e um regime de servidão. Tchichikov queria então comprar as tais almas que já estavam mortas, mas que ainda não foram declaradas como tais no censo e, portanto, ainda eram cobrados impostos sobre elas. Assim, a ideia era comprar essas almas a fim de hipotecá-las como vivas e lucrar sobre elas. Ele então percorre por toda a Rússia a procura de fazendeiros, comprando as almas mortas, inventando, para cada um deles, motivos diferentes.

A história em si é um “esquema” bem curioso, mas não é o que chama a atenção no livro, principalmente se você compara com a história de um homem em que um belo dia descobre que seu nariz fugiu (estou falando aqui do conto dele, O Nariz). Mirabolantes ou não, a história para Gogol é um pretexto para algo maior: a narração. O autor descreve toda a paisagem russa ao decorrer das viagens de Tchichikov, exaltando sua beleza, sua imensidão. E, principalmente, Gogol descreve a índole humana de todos os personagens, até mesmo os mais (aparentemente) sem importância.

O Narrador

Uma das coisas que torna a leitura dessa obra tão única é o narrador que conversa com o leitor. Os brasileiros, aliás, estão acostumados com o narrador que, como nos filmes em que o personagem “quebra a quarta parede”, fala diretamente com o leitor – traço característico de Machado de Assis.

Aqui, Gogol faz um movimento interessante de afastar o narrador do autor, ora parecendo que refere a si mesmo em terceira pessoa, ora parecendo que realmente existe essa distinção, como um “alter-ego” do autor.

O leitor, creio eu, já deve ter percebido que Tchichicov, apesar do seu ar carinhoso, falava com a velha mais livremente do que com Manilov, e não fazia nenhuma cerimônia.

Pode ser que alguns leitores achem tudo isso inverossímil; o autor também está disposto a concordar com eles que tudo isso é inverossímil. Mas, como que por desaforo, tudo se passou exatamente assim como está sendo contado (…).

Dissecando a índole humana

O personagem principal não é o que podemos chamar de herói. Mas poderia ser, adverte o narrador, se não o conhecéssemos tão a fundo. Se não tivéssemos acesso a suas motivações mais íntimas, aos desejos mais profundos. Nos advertendo sobre o humano, Gogol defende que seria melhor não conhecer ninguém tão a fundo.  

 Afinal, os leitores não gostam de ver a miséria humana, que é a nossa própria miséria.

Mas o lamentável não é que o herói não agrade aos leitores; o lamentável é que no nosso foro íntimo reside a certeza absoluta de que esse mesmo herói, esse mesmo Tchichicov, poderia ter-lhes agradado. Não tivesse o autor perscrutado tão a fundo a sua alma (…); mas se ao invés disso o tivesse mostrado tal como ele se apresentara a toda a cidade, a Manilov e aos outros, todos ficariam muito contentes e o tomariam por um homem interessante. (…) Sim, meus bons leitores, vós preferiríeis não ver descoberta a miséria humana. Para que, dizeis vós, qual é a utilidade disso? Então não sabemos sozinhos que existe muita coisa ridícula e desprezível na vida? Já sem isso nos acontece ver muitas vezes coisas bem pouco confortadoras. Melhor seria se nos mostrassem o belo, o atraente. Melhor seria que nos esquecêssemos disso, que escapássemos disso! (…).

Essa descrição exaustiva dos personagens é justamente o fator principal de Almas Mortas. O povo russo, a personalidade das pessoas, os costumes, tudo isso é enfocado no livro, com um propósito: mostrar a mediocridade e o grotesco. Gogol mostra a Rússia sem pudor: suas banalidades, suas mesquinharias, suas mediocridades.

Para que mostrar a pobreza e outra vez a pobreza, e a imperfeição da nossa vida, desenterrando personagens de perdidos cafundós, de recantos longínquos da nossa terra? Mas que fazer, se é esse o feitio do autor, que, doente da sua própria imperfeição, já não consegue pintar nada além da pobreza, e outra vez a pobreza, e a imperfeição da nossa vida (…).

Pável Ivanovitch Tchichikov

O personagem central do livro é um homem que sabe muito bem lidar com as pessoas. De uma exímia educação e presteza, agrada a todos na cidade com seus elogios, com seus galanteios, que inflam o ego do seu interlocutor. Passa a ser convidado para os bailes, almoços, reuniões de todo o tipo, pois todos querem a agradabilíssima companhia deste homem, sempre muito modesto, muito sedutor. Tchichikov faz tudo isso porém, não por ser sua personalidade, mas para obter sucesso no plano de conseguir as almas mortas. A primeira mulher que lhas vende, uma tola viúva, se sente inteligente e esperta por fazer um belo negócio. Um outro velho, já decaído, se sente honrado por Tchichikov se propor a ajudá-lo no pagamento de impostos sobre as almas mortas, comprando-as. Enfim, todos se sentem espertos, honrados e felizes com Tchichikov ao lado. Criaturas bestas que são, ludibriadas por alguém que sabe exatamente como manipulá-las.

Porém Tchichikov não me desagrada. Não tenho por ele raiva nem rio dele. O sentimento que ele me despertou foi de outra natureza: piedade. Tchichikov é um homem solitário, ambicioso e infeliz. Em várias passagens do livro pensa ele em ter uma mulher, filhos, em se fixar em uma terra com almas vivas e levar uma vida tranqüila e feliz. Foi ensinado desde cedo a ter grandes ambições, o que o condenou à infelicidade, sempre na tentativa de conseguir o que quer, mas nunca realmente conseguir. Tenho dó de Tchichikov. Pena. Às vezes me parece uma frágil e indefesa criatura, tão tola quanto às que ele engana, tão pobre, tão medíocre.

Almas Mortas é daqueles livros que devemos reler de tempos em tempos. Tenho certeza que se um dia o fizer, outros sentimentos irão despertar em mim em relação ao protagonista, e talvez, consiga rir mais da mediocridade humana. Mas por ora, fico com a impressão despertada em meu jovem eu de outrora.

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